quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A neta do torturador.



água dura e pedra mole
tanto bate até que bole

pedra mole e água dura
tanto bate até que fura

água mole e água dura
tanto pedra, quanto é pura

pura?

fura fura

dura dura

dura.

-mole?

Mamãe me xingava de "neta de torturador" quando eu era criança. Ainda hoje ela me chama assim as vezes...
Só que hoje em dia eu até acho bonito.

O pai de mamãe era político no sertão pernambucano, morreu em 1966,
tinha uma usina de beneficiamento de algodão
e dizem que um abacaxi extrangulou sua úlcera.

O avó torturador a que mainha se refere era o pai de painho...
minha vó, a viúva, conta que o marido nunca bateu num preso,
e que ganhou uma homenagem quando completou 1001 escoltas,
na mesma época que João do Pulo tinha completado 1001 pulos.

Meu pai, aos desoito anos, depois de assistir Fratello sole e sorella luna de Franco Zeffirelli, resolveu ser São Francisco...

encontrou tempos depois o apelido do pai dele na lista do movimento "tortura nunca mais":
- Gavião.

Hoje meu pai é psicólogo,

e se perdoa por nunca ter tido relação boa com o pai...

Mamãe até hoje chora quando começa a falar na ditadura militar,
apesar de o exílio político a ter possibilitado somar 32 países nas andanças.


Hoje, ainda não sou "mãe", nem "psicóloga", nem "torturadora"...
no entanto, esses espelhos próximos foram janelinhas, como aquelas da ida dos dentes de leite, abrindo em sorrizinho tímido, para um entendimento mais amoroso dos sentimentos e processos sociais no meu país.


*
Araraíra Mahin
Recife, 9/9/2009.