quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O almanaqueiro

manoel luiz Profeta - o almanaqueiro


"Sou profeta, poeta e professor"
                        Manoel Luiz dos Santos

Almanaque, segundo Aurélio Buarque de Holanda: "Publicação que, além de um calendário completo, contém matéria recreativa, humorística, científica, literária e informativa.

“O almanaque é um gênero editorial, não um gênero literário”, afirma Bráulio Tavares.

Os almanaques, são parte importante da literatura de cordel. Populares nos nordestes do país, nas feiras, nos sertões; são parte de uma poética do campo; a relação com as chuvas, com as secas, solustícios, luas, eclipses... O plantio e o cuidado dos rebanhos... 

Os almanaqueiros são profetas, poetas, religiosos místicos... Mistos ciganos, sem ser... Brincantes com o tempo, com a métrica dos versos, com a matemática orgânica do cotidiano ampliado.

Manoel Luiz dos Santos, libriano, nasceu a 29 de setembro de 1926 no povoado Batatas do município de São José do Egito, no sertão pernambucano. Escreve e publica seus próprios almanaques, sendo o seu “Almanaque do Nordeste Brasileiro” o almanaque mais antigo em circulação no Brasil. Em 2016 completa 68 anos de publicações contínuas. 
Em nossa visita a ele em 2010, já tinha prontos, o do ano seguinte e o boneco do de 2012.

Foi por indicação da professora Cida Nogueira que fui procurar esse senhor, na terra onde cresci, na beira da pista, numa casa simples, com uma plaqueta de madeira assinalando que ali residia um profeta. Fiz uma visita rápida, com um pequeno caderno vermelho onde fui anotando pequenos dados e onde só depois pude fazer algumas notas mais amplificadas. Voltei lá depois com um gravador, emprestado de um amigo, Geraldo Palmeira filho, jornalista, de lá, e que há um tempo também já havia pesquisado e publicado matéria sobre a figura. Dessa vez foi mais longa a conversa: dois dias seguidos de visitas ao profeta. No primeiro dia foi mais um reunião de mesa; onde me tirou cartas, onde contou infância e de sua história com o tarot divinatório. Já no segundo dia, como um tradicional cigano veda, martelava metais em sua oficina. Tilintando o ancestral som da técnica, de consertar vasilhas, fazer talismãs, som de sinos. Da conversa humana com a sobrevivência e com a esquiva da passagem. Fiquei encantada com seu carisma, sua sabedoria alcançada, sua história, memória, sua insistência obsessiva em criar e saber e partilhar. A sua alegria, sua graça, sua verdade brincante. Reinventando posição no tempo. Repaginando em bricolagem e fotocópias a profissão antiga desalcansada pela hegemonia do novo, mas contemporânea livre de formatos seguidos e escolas. 

Depois dessa visita mais longa e em que não secou o poço dos assuntos, me sentia no dever de voltar lá. Pulsou a necessidade moderna de registro. Fazer um vídeo, ampliar a linguagem. E foi o que fizemos... Posteriormente, em ocasião de uma disciplina de antropologia visual que cursava, novamente, como ouvinte, reuni turma e dois "Jacarés", parceiros produtores de áudio visual, que poderiam auxiliar a função documental imagética. Assim, planejamos viagem rumo aos ensinamentos do velho.

Com uma equipe de 7, chegamos ao "berço da poesia", em tempo de eleição, procurar nosso personagem. 
A viagem, como um todo, foi repleta de aberturas, onde todos, e cada um de nós individualmente, mesmo que inconscientes disso, buscavamos, além de uma boa narrativa, as nossas próprias verdades e máscaras. 

Nosso personagem foi também diretor, já pronunciando "corta" nos momentos em que, auto crítico, um erro o surpreendia. Escolhemos como primeira locação externa "o Monte" , local rural com grande escadaria e uma pequena capela no topo, ao lado de uma grande Cruz, onde uma vez ao ano acontece uma missa, em que beatas e romeiros pagam promessas, comerciantes vão vender velas e merendas, crianças vão com seus pais e avós, moças e rapazes se encontram. Fizemos com o profeta um verdadeiro "sermão da montanha", inspirados pelo livro de Gibran, onde "O profeta" do livro responde às mais variadas perguntas. A "vida", o "Amor"... fizemos também as nossas. 

Seguimos artifícios da etnoficção, ou do chamado "documentário contemporâneo". Assim levamos Manoel ao monte, onde professou sermões e respostas.

Foi entre os monturos que achou a pista para adquirir seu primeiro tarô. Em uma propaganda da editora Pensamento. "Peça seu tarot divinatório" - e pelo endereço de correios em São Paulo viriam as lâminas almejadas pelo jovem Manoel. Perguntou ao pai se podia lhe regalar a encomenda, que ao ver que de longe viria, disse: "Chega não, meu filho, chega não". Mesmo assim, pela insistência do garoto, fez a compra.
Recebidas as cartas, que ao contrário do que proferiu o pai, chegaram, foi a feira comercializar previsões e conselhos. A primeira cliente que conseguiu no ramo tornou-se sua esposa, da qual enviuvou depois de filhos já crescidos. 

Sua atual companheira chama- se Olívia, prima sua, filha de um primo. Diz que fazia um tempo que anunciava em rádio a busca de uma parceira. Foi então que uma prima disse ao pai: "chame esse Manoel aqui pra gente se conhecer". E foi o Manoel, no sítio conhecer a filha do primo; eis que quando chegou, a moça muito "vergonhosa", se foi esconder na cozinha. A mais nova afoitou-se ajudar a irmã e foi à sala fazer. Voltou dizendo: "mulher, ele até que num é tão feio não... E tem uma coisa boa, ele é alegre". 

Em meio à falta de entusiasmo da irmã mais velha, a mais nova, Olívia, disse ao pai: "ô pai, se fulana num quiser, pode dizer a ele que eu quero". E com ela está até os dias atuais, com a "taurina do dia 5 do 5 de 55". 

É nas madrugadas, onde o senhor com hábitos noturnos acorda para trabalhar. E entre 3 e 4 da manhã que artesanalmente estuda e cria. Momento onde reina o silêncio, momento em que estão abertos portais invisíveis entre os universos.

Manoel Luiz passou três anos cego, "cego de guia",
mas não deixou de fazer almanaques nem poesias
pedia ajuda a companheira Olívia,  sua prima
 "bamba", como diz ele, na pesquisa e na datilografia  

Durante anos produziu seu folhetos através de tipografias e depois gráficas. Hoje Manoel não paga mais para que o editem, ele próprios o faz, de forma artesanal. Escritos que viram recortes. Matemáticas lunares, astrológicas, gráficos, versos diversos.... E visita á xerox! "Sai mais barato e na hora" - conta. Assim saem os novos: com a letra dele, o risco dele, a cara dele.

Da madrugada. Conta que quando menino gastava toda a "Querosene Jacaré" que o pai comprava. Cara, preciosidade. O combustível permitia o luxo das letras e dos números do fogo interior refletindo debaixo do céu. E quando apagava o cadeeiro, estudava as estrelas.

Hoje o profeta aconselha:

Pra você se livrar do aperreio,
Cale mais, fale menos, bem assim:
Vá você hoje mesmo ao correio
Deposite dinheiro para mim
                                Manoel Luiz dos Santos