quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sobre o semi-árido:

Caatinga

O teu suvaco é o melhor cheiro
Umburana, cajueiro...
Me inteiro dele, observo, conservo
Me serve.
Inteiro.
O teu suvaco me acalma.
Ar de árvore. Me arvora. Alvoroço.
Me desalma.
Me indecora.
Indecoroso.

No meio do tempo
a alma range.
Almanaque que me foge...
Teu suvaco longe.

Metade tarde no deserto
Acordo de sonho desperto.

Outro fato. Olfato.
Teu cheiro de gato do mato
Revirando meu lixo...
Bixo indiscreto.

Irresponsável, disperso.
Quando passa deixa sempre a porta destrancada.
Há de ser pego pelo rabo
em emboscada.

-Me destranca!
Concorda e me espanca!
 Aberta a tranca
desperta o nó.
Meu gogó enforca.

-Polícia!

Sente a delícia do mal que alicia.

Carrasco...
Na tua lei eu me lasco
Caio numa fria.

“alegria alegria...
Você trás a coca-cola
Eu tomo... ”

Bebida do cão.

Puro osso moço mag(r)o
vem que te faço estrago
estrangulo engulo bulo pulo
a cerca, perto, fina caatinga.

Tenho sêca, sêde – sede amoringa...
quero bebê-lo, palmeirim imperial
cristal onde o bebedoíno amarra o camêlo
com zêlo, sem atropêlo,
quero comê-lo.

Vara, pau, menino, alto, galante,
filho, infante, varão, verão, volteir...

Varou de flecha meu peito
de mulher. Varou de jeito.
Taquari tacaratu tesão-açú...

Dizem que por essas e outras
foi eleito: “A Louca do Pajeú”!

E é por tanta lindeza de ser tão,
temporário desvario,
que depois de tanta fala, silencio.

Pois há como ser boa e amiga
a convivência com o semi-árido.




Guiné, da Selva - Novembro de 2010/12.



karma kordel


Cordel do Karma amoroso.

Cumadre, minha cumadre
Inda bem que tu chegou
eu já tava agoniada
te esperava com fervor
tenho tanto a te contar
que é melhor tu te sentar
pois a história é de amor

Ave Maria, cumadre
Então tô no lugar certo
Pois se existe uma coisa
De que quero ficar perto
É de causos de paixão,
De romance, de tesão
De amores descobertos

Já tô vendo pelo tom
Tu também estais deslumbrada
Achaste alguém pela estrada!
Estás usando até batom

Vermelho, minha cumade
Tamanha a euforia
Um fogo que vem de dentro
Coisa que não mais sentia

Vermelha também estou
Vestida toda em paixão
Suspiro a todo instante
Me guia a emoção...
Acontece que, cumade,
Uma confusão me invade
Algo sem explicação!

Me conte logo quem é
a figura do momento
Provavelmente outro karma
conduzido pelo Vento

No dia que o vi, era Primavera,
Estrelas bailavam, saudando a estação
E os ares mudavam a constelação
Trazendo-me o novo, o que não se espera
Uma luz incidia, cores de aquarela
E’eu água, fluindo, o olhava surpresa
me reconhecia, confusa clareza
lembranças de um tempo, quase intemporal
alguém que algum dia, me era vital
e que ressurgiu, me trazendo incertezas
Como Jung nos dizia
O que a gente não resolve
Não tem jeito, não dissolve,
Retorna como destino
 
êêêita...
Esse Jung era sabido...
era sabido demais!
Eu mermo num ‘tem’ mais paz
‘Té’ meu sonho é perseguido
Pareço animal ferido
Sem muito poder mexer
O deixar acontecer
É o que tenho de opção
Não posso ir na contra-mão
Só me resta re-viver

Pra isso que os karmas vêm
uns fantasmas ressonantes
uns zumbidos, uns berrantes
ressuscitados do além
e não nos deixam tão zen
nos agoniam é muito
com garras de cão afoito
arranhando as nossas portas
acordando coisas mortas
em seus grunhidos de coito.

Também se buscam de fato,
e a nós suas esposas;
Sendo lobos e raposas,
Sendo cachorros do mato,
A luz do olho do gato.
O movimento da lua.
Expresso e me sinto nua
Ele cala e eu escuto...
Porque eu fico de luto
entendendo a morte sua?!...

És igual Orfeu de Eurídice
Não crês que o possas ter!
E a morte que te fere
e que não querias ver
é o que de fato se inscreve
nas profundezas do ser.

E mermo, comadre sábia
tinha esquecido essa a lei
Se penso no que não quero
só o que não quero vem
Devo pensar no que é belo
Pensar no que me faz bem

Ontem mesmo me deram para ler
um livreto do sábio Saramago
Bem se vê pelo nome que foi mago
inda mais pelas coisas que se lê:
“Que amar é a melhor forma de ter
e que ter é a pior forma de amar”
Veja só que exercício salutar,
o de amar sem ter medo de perder,
e perder esse medo de amar!

Parece queu li o tal livro que dizes
Num fala de mares, de ilhas até?!...

Exatamente, cumadre
um navegante que quer
um barco, e que pede ao rei,
e lhe escuta uma mulher
e comungando do vento
oferece a sua fé.

A ilha desconhecida
ele pretende encontrar
Uma ilha diferente
Que em nenhum mapa está
Canto desacreditado
pelas gentes do lugar

E procura o não-lugar
o ponto de mutação
de que nos comenta a física
fazendo essa alusão
a um espaço que existe
mas que é em relação!

A ilha desconhecida
é aquela que nos une.
Ninguém a ela é imune
Por todos ela é sentida.

E a essência da vida...
Pensamento dividido.
Se o EU cá é finito,
o OUTRO é que é o sentido!

Num vejo sentido não
pois não sei se ele vê
eu penso que só fiz merda
em inventar de me envolver
e ele agora me despresa
Me olha todo blasé...

Todo bicho produz merda,
Fato! fede e fertiliza.
Com tudo a gente improvisa
Se aprende com a perda.
De toda morte se herda
Alguma lida e saber...
Perca o medo de perder
Seja parca, fique em paz
Signifique o rapaz
Na metáfora do ser.

Nossos olhares se olhando
Trazem embriagamento
nossos corpos se tocando
uma febre, um lamento
freqüências já moduladas
energias reencontradas
uma prece, um alento

Pois é, querida cumadre...
A flor das habitações
O mago destas nações
As razões da grande madre!
Já nas orações do padre
a busca é conflituosa.
Entre a poesia e a glosa
a prosa prata Luzia
Uma igreja hipocrisia
Silêncio que oprime a rosa.

inda bem que tu entendes
É exatamente isso
Um cutucão no toutiço
Que nos deixa mêi demente
Nos remexe de repente
O sangue e alma fervura
Se instala uma loucura
Santa, contudo profana
Que nos confunde, que engana
E nos lança na aventura

Aventura de tempos ancestrais
Carregada de símbolos, mistérios
De poderes intrínsecos, etéreos
Recorrendo buracos abissais
Vindo à carne, a nós os animais
Conscientes e tão inconscientes
De nós mesmos, nós sempre tão ausentes
Tão perdidos, buscando e buscando
E no outro, no espelho, encontrando
Sonho, imagens, fogueiras e correntes

E correntes correntes, e correntes...

Corredeiras me trazem, eu, menina
De colares, pulseiras e anéis
Danço, canto, e escrevo uns cordéis
Redescubro minha graça feminina
A essência sagrada, eu divina
O meu sangue em cálice de amor
O meu sexo pulsando com ardor
Derramando meu cheiro no universo
Me entrego,  revelo meu reverso
Dou adeus ao que em mim era torpor

Comadre querida, é tudo qu’eu quero
Poder ser tão plena nessa comunhão
Mas vem esse medo, essa culpa, esse não
Paixão somatizo, doença que gero
Depois me perdoo, medito, e espero
Que um dia o encontro amanheça melhor
Encontro comigo, é bom estar só
Segura, tranqüila, realimentada
Depois de sangrar, de alma lavada
Me sinto mais gente, desatei um nó.

Muitos nós, no entanto, ainda existem
E é somente em contato e relação
Que se pode tratar com exatidão
Os feridos e feras que insistem
Pois te digo que eles não desistem
Como Jung nos disse eles retornam
E os caminhos febris eles adornam
Como pedras nos selfs, atordoam
Arabescos tais aves que revoam
E onde pousam, janelas que se tornam.

Penso até que em outra vida
Eu fui dele a Psique
Procurava sem saber
Que nele eu tava contida
E incerta, e atrevida
Redescobri-me no amor
Fui flexada, senti dor,
Mas prossegui na jornada
Por deuses abençoada
Torno ao Cosmos com louvor

Quem nos guia é o fio de Ariadne
O amor, nossa busca incessante
tando juntos, não existe minotauro
Que nos mate, aniquile, corte o instante

Mas se em ilha sozinha me deixar
Eu invoco a deusa Afrodite
E ela logo aceita meu palpite
E me envia um Deus pra me encantar
Meu mortal viverá em outras paragens
Seguirei com outro alguém nessa viagem
Meu destino é um dia eu me encontrar

Esses pestes vêm é aperriar
Aperreio preciso, eloqüente
E a gente, mulheres – as serpentes!
Cutucadas nos pomos a gritar
Nos abrimos pro ser e pro estar
Nos abismos gozamos confiança
Respeitando a si e a própria dança
Convivemos com o medo inerente
Que contido em nós, seres viventes
Nos transmuta, nos lança, nos balança.

Eita conversa infinita
Num instante passou a hora
Se sentires alguma coisa
Expressa, bota pra fora
Faz teus verso, poetiza
Cheira as flores sente a brisa
Comtempla o nascer da aurora!


Por Luciana Carmen Rabelo e Anaíra Mahin
Recife, 2010

duas histórias em uma



O  Milagreiro Quebra-Osso
eo romance de Mabel e Toríbio Fortes


Eu vou contar a história
Dum caso que aconteceu
Há mais de 50 anos
E que comigo mexeu
É a história de um casal
Que ficou amigo meu.

Não sei se alguém já leu
Nenhum livro foi escrito
Mas quando eu fui escutando
Fui achando tão bonito
Que não podia deixar
No dito pelo não dito.

Eu aqui ainda cito
O dia em que os conheci
Naquela noite chuvosa
Perto do Tucuruvi
No bairro Vila Mazei
Naquelas bandas dali.

Com a minha vó, tava ali,
Com Saura, e a prima Aninha
Também tava o primo Henrique
E a minha tia Kinha
Esperando numa fila que
Outras pessoas tinha.

E outras pessoas vinham
Procurando alguma cura
Pra seus problemas de ossos
Pra sua desestrutura
Pra melhorar a cifose
E aumentar na altura.

Era um senhor sem frescura
O curador do lugar
Com uma roupa de esportista
E um tênis all star
Disseram que havia sido
Da polícia militar.

Continuando a contar
O senhor que descrevia
Teve um problema grave
Que doutor não resolvia
E o milagre da cura
Foi com quiropraxia.

E essa tal praxia
Pra ele virou missão
Tendo aprendido o ofício
Tinha uma coisa na mão
E essa coisa era a cura
Que hoje oferta a todo irmão

E virou religião
A promessa do senhor
Que aprendido o bendito
Ofício que o curou
Ele o ia divulgar
Como graça ao salvador

E com as mãos de amor
O homem vem estralando
As juntas de quem lhe chega
Pela fila lhe esperando
E chega o povo bem torto
E ele saí concertando.

Parece que vai quebrando
Lhe apelidam “quebra osso”
Às vezes tem um gritando
Dizendo: “calma Seu moço”
Mas quando lhes passa a dor
Querem encher o seu bolso.

O fato é que o “Quebra Osso”
Que estrala tão ligeiro
Trabalha pela promessa
Não pela voz do dinheiro
Porque se ele quisesse
Ele virava bicheiro.

Mais parece um milagreiro
De tanta gente na porta
Tem gente que vem tão mal
Que a nossa alma corta
Mas o tal do “Quebra Osso”
Vai ali e desentorta.

Somente o que o conforta
É o corpo em harmonia
O esqueleto certinho
Sem nenhuma cirurgia
Pois só o que ele critica
É a tal alopatia.

Que qualquer Dona Maria
Que chegue a um hospital
Com dores em suas juntas
O doutor diz: “estás mal,
O jeito é cirurgiar
Na anestesia geral”.

Eu digo que esse mal
O milagreiro abomina
E aconselha a seu povo
E a ninguém discrimina
Pois todos têm o direito
De ficar com tudo em cima!

Mas eu me perdi menina,
Da outra história importante!
Ia contar pra vocês
Outra coisa nesse instante...
Espera que vou lembrar...
Não preciso ir tão distante.

Então, seguindo adiante,
(Lembrei o causo qual era)
Naquela fila engraçada
Não foi coincidência mera
Encontrar aqueles dois
Ali, numa mesma espera.

Uma coisa a outra gera
É a lei da atração
Encontrei aqueles dois
Em silenciosa oração
Cês vão ver como deu certo
Como entraram na canção.

Eu pensando: ‘Eita mundão
De coisa linda pra ver
Só basta ser a janela
Para o dia amanhecer
E depois de amarela
Virar azul no saber.

E tudo a acontecer,
Sem uma ativa procura
A brincadeira existindo
Com as asas na loucura
Uma loucura de ave
Que eleva a vida à altura.

Pois eu estava segura
E na busca do presente
Sabendo que tinha algo
A me dar aquela gente
Sabendo que a mão da troca
Não era tão diferente.

Foi então que de repente
O casal veio ao destino
Um senhor que alegremente
Cantava um tango argentino
Em uma veste alinhada
E com ares de menino

Estava muito granfino
Feito cantor de bordel
Um terno preto listrado
Só lhe faltava o chapéu
E ao lado a sua esposa
De nome: Dona Mabel

A mão de dona Mabel
A cavucar pela bolsa
Procurava um retrato
Do tempo em que era moça
Um retrato bem antigo
Que ela guardava zelosa.

Um maiô bem elegante
a trapezista vestia
preto e branca no retrato
colorida na magia
do tempo em que trabalhava
num tal de Circo Garcia

recordava apontando
o retrato situado
recordando inclusive
como havia começado
essa vida estradeira
com Toríbio, seu amado

nas terras da Paraíba
Campina Grande a cidade
Foi onde começou tudo
Com muita propriedade
Uma cigana dizia
Que ela dali saia
Por causa de amizade

E um dia, dito e feito
Chegou por lá um rapaz
Leitoso, cabelos pretos
olhos cheios de sinais
pelos mistérios destinos
das suas sinas gerais.

Ele gostou da donzela
Fixamente a olhou
E a face enrubecida
Pelo olhar que a penetrou
Corajosa e discreta
Um outro passo esperou

Ele foi ao seu encontro
Não sabia o que dizer
Se sentindo apaixonado
Quis com a moça viver
Pediu logo em casento
Pelo medo de perder

Como ele era do circo
medrava a rejeição
Inventou umas mentiras
naquela situação
Pabulando um outro ofício
Que apresentasse mais chão

Mabel, cabocla faceira
Em Toríbio apostou
Não que ela acreditasse
Em tudo que ele falou
Mas era crente às palavras
Que a cigana professou

O pai dela era valente
velho brabo e ciumento
Queria filha nenhuma
Arranjando casamento
Com forasteiro enxerido
Don Juan, mal elemento

Consciente da resposta
De seu querido paizinho
Mabel, que era decidida
A seguir o seu caminho
Embarcou na aventura
Dessa troca de carinho

Fugiu com o viajante
Virou moça desonrada
E nesse caminho errante
Já tripulando a estrada
Uma verdade secreta
De pronto foi revelada

"A minha casa é o circo
Não sou rico nem doutor
Temia que se dissesse
Estremessesse o amor
Mas nesse momento digo
Inda queres vir comigo
Ou vais me deixar na dor?"

"Dá tempo de desistir"
Mabel refletiu - será?
Se eu voltar desonrada
O meu pai pode me matar
Eu já ousei na coragem
Não quero mais arriscar

E foi-se embora Mabel
Fazer da estrada a sina
Deixou a vida de moça
Os pais, a casa, a campina
Já ae sentia mulher
Carregando uma menina

Dali foram muitos circos
Que essa dupla enfrentou
Tiveram filhos os dois
Uma equipe se formou
Criaram seu próprio circo
Não era pobre nem rico
O universo ajudou

Com a família formada
Voltaram para Campina
Mabel fora perdoada
Pela saga peregrina
Seu pai e mãe viram festa
Cada neto uma seresta
Refiguravam a sina

Turíbio a mãe recordava
Uma Índia Guarani
Cabelos negros da noite
Feito a valente Anaí
Viveu as dor do desmundo
Mas deixou um tom profundo
De força pra o conduzir

Lembrava ele dos traços
Do rosto da mamãe sua
Da verdade que trazia
Em sua beleza crua
E do cansaço vigente
Que embebia o presente
Na lembrança que situa

Essa ancestralidade
Os dois traziam em si
Sendo Mabel sertaneja
Uma cabocla daqui
Em sua face trazia
Uma invisível etnia
De outra ramagem tupi

Enfim, contei deste encontro
Como tantos outros são
Entrelaçados a outros
Unindo cor e canção 
Tendo a história na bagagem
Busco no verso ancoragem
Pro barco ter direção

Tenho admiração 
Por trajetórias assim
Histórias vivas reais
Que chegaram até mim
Que em momento me encantaram
E por aqui se contaram
Virando verso no fim